A população mundial está dormindo menos e essa não é nenhuma novidade. Embora as pessoas passem, em média, 25 anos dormindo, o que representa cerca de um terço da vida, ainda é curioso como a rotina do sono não recebe a devida importância por boa parte da população. Mas há diversas iniciativas em andamento que movimentam uma verdadeira indústria do sono. Afinal, os números revelam que o problema está aumentando: o estudo "Global Sleep Health Insights", divulgado pela Samsung no Congresso Mundial do Sono, no Rio de Janeiro, em 2023, apontou que a eficiência do sono — proporção entre o tempo passado na cama e o tempo real de sono — está em queda. Entre o primeiro ano da pesquisa e o segundo, a duração total do sono diminuiu quatro minutos (variando de 7h03 para 6h59), enquanto o tempo passado acordado aumentou 1,5 minuto (indo de 48,8 min para 50,3 min).
Os dados inéditos sobre o sono no mundo foram obtidos pela pesquisa realizada entre junho de 2021 e maio de 2023, com análise dos hábitos de sono de 64 milhões de usuários do Samsung Galaxy Watch, relógio inteligente da marca, espalhados entre 195 países, incluindo o Brasil. Os resultados foram fornecidos anonimamente por usuários que concordaram em participar da pesquisa.
Para a médica psiquiatra, Victória Regina Bejar, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), um dos principais elementos que mais dificulta o sono é o excesso de informações. "Lidamos no dia a dia, no trabalho, na vida pessoal e com nossas necessidades pessoais mínimas como demandas excessivas que não permitem que nosso cérebro descanse", pontua.
Mesmo que dormir bem seja o objetivo e a utopia de milhões de pessoas que sofrem com algum problema para pegar no sono, na prática, essa realidade pode sim melhorar com a redução ou eliminação de maus hábitos. Este ano, o Dia Mundial do Sono será em 15 de março, data que busca conscientizar a população sobre a importância de dormir com qualidade.
Conforme Bruno Della Ripa, neurologista do Hospital Nipo-Brasileiro, grande parte dos problemas de sono advém de um comportamento inadequado e da falta da higiene do sono: "Basta perceber como temos ido dormir cada vez mais tarde, trocando nossas valiosas horas de sono pelo hábito de responder a e–mails e checar mensagens de WhatsApp e afins, imersos nas redes sociais, assistindo seriados e filmes".
Segundo o neurologista, para mudar esses hábitos, diferente dos aparelhos eletrônicos, é importante entender que o cérebro não tem um interruptor de "liga" e "desliga" e que o ato de dormir bem faz parte de uma espécie de "ritual do sono". O profissional comenta que ao anoitecer o cérebro entende a diminuição da luz. Assim, ele passa a reduzir o metabolismo das células, mudando a pressão, frequência cardíaca, temperatura corporal, "produzindo neurotransmissores que relaxam e diminuem a atividade cerebral para, então, iniciar o processo de sonolência e sono", diz.
De acordo com estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Brasil, cerca de 72 milhões de pessoas sofrem com distúrbios do sono, mas a grande maioria não busca ajuda profissional. Luciana Palombini, médica do Instituto do Sono, salienta que, para queixas de sono, deve-se procurar um especialista e não se automedicar: "Quando um paciente não consegue dormir, existe sempre uma questão relacionada ao sono que não foi vista. Insônia e apneia são as mais frequentes, mas precisam ser investigadas. Pode ser uma questão comportamental do sono, estilo de vida, ansiedade ou depressão não bem manejada", reitera.
Muitos desses "remédios naturais para dormir" estão facilmente disponíveis em farmácias, mas a médica faz um alerta: "A melatonina, se tomada em horários errados, vai bagunçar mais o sono. Não se deve tomar a melatonina sem orientação e muitas vezes ela não resolve o problema. Já o triptofano, por exemplo, não tem pesquisas suficientes sobre a eficácia para tratar o sono", pontua.
Contudo, Della Ripa destaca que, mesmo que grande parte das doenças relacionadas ao sono, especialmente a insônia, possam ser tratadas com a adoção dos já referidos hábitos de higiene do sono, reforçado por recursos terapêuticos não farmacológicos como a Terapia Cognitivo Comportamental direcionada ao sono, uma parcela considerável da população pode ter dificuldade em aderir rapidamente a tais medidas ou ter respostas rápidas. Por isso, em alguns casos a adoção de fármacos pode ser de grande valia: "Desde que por um período curto, programado e devidamente orientado por profissional capacitado", fala.
De acordo com Palombini, as medicações cientificamente comprovadas que ajudam a induzir o sono, por exemplo, para a insônia, também podem levar dependência e tolerância, e com o tempo perder o efeito. É o caso dos remédios benzodiazepínicos. "Estes não podem ser usados continuamente para evitar a dependência. Só podem ser indicados por especialista de maneira específica", adverte a médica do Instituto do Sono.
Esse cuidado com a automedicação é um ponto defendido pelo neurologista Bruno, principalmente com os medicamentos sem prescrição médica: "Não existem substâncias e pílulas milagrosas para o sono. Mas algumas podem ajudar, em situações específicas e prescritas por profissionais capacitados, por períodos programados, aliados às medidas não farmacológicas", alerta.
Uma das novidades é o Daridorexant, conhecido como o comprimido contra insônia que não vicia. Na prática, o medicamento desativa os circuitos cerebrais que mantêm as pessoas acordadas, antagonizando os receptores de orexina, fazendo com que a vigília seja abandonada para entrar na fase de sono. Ao contrário dos hipnóticos mais comuns (Benzodiazepínicos), o Daridorexante tem menor perfil viciante, não causa sonolência e preserva as funções psicomotoras no dia seguinte, como coordenação, memória e atenção. Nos Estados Unidos, esses medicamentos já foram aprovados e, em breve, devem chegar ao Brasil.
Sobre o acesso aos medicamentos, Della Ripa destaca que "o investimento em pesquisa para a compreensão adequada de aspectos biológicos, farmacológicos e moleculares do sono é indispensável para a criação de novos medicamentos, que sejam mais seguros, eficazes e disponíveis".
Ele destaca que um problema ainda enfrentado no Brasil é a grande dificuldade em ter acesso a medicações ainda não aprovadas e registradas pela Anvisa ou que sejam produzidas por indústrias farmacêuticas locais, necessitando serem importantes e inviabilizando a aquisição pelo alto custo: "É o exemplo de substâncias já bem estudadas e reconhecidas como seguras e eficazes, como o Suvorexant e Lemborexant, entre outros. Tal dificuldade acaba expondo pacientes e profissionais à necessidade de utilizar medicamentos menos eficazes e seguros", comenta.
Estudo recente publicado em outubro na revista científica The Lancet, "The need to promot sleep health in public healt agendas across the global", expõe os problemas crônicos acarretados por doenças relacionadas ao sono e qual o seu peso, em diferentes esferas, como na saúde pública. Além disso, demonstra as disparidades em políticas e registros de doenças do sono, propondo que sejam tomadas ações globais que possam reduzir os danos causados por essas doenças.
Diferente da alimentação e da atividade física, geralmente monitoradas com mais frequência, o sono não costuma ser observado da mesma forma. Segundo a pesquisa, "da revisão da literatura de 194 estados membros da Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 43 (22%) recolheram e publicaram dados sobre a duração do sono a nível populacional".
Os autores afirmam que as consequências da deficiência de sono são uma ameaça à saúde e por isso sugerem uma pauta de ações globais que possam reduzir os danos causados pela falta de sono, porque há também um impacto na economia: "As perturbações do sono ameaçam não só a saúde global, mas também o orçamento nacional de saúde de todos os países do mundo", sinaliza a publicação. Eles citam, como exemplo, "os cuidados de saúde, acidentes de trabalho e de veículos motorizados, perdas de produtividade, perda de receitas fiscais e pagamentos de assistência social".
Mesmo negligenciados por muitas pessoas, os problemas relacionados à falta de sono podem acarretar problemas em curto, médio e longo prazo. A curto prazo, rapidamente identifica-se uma menor disponibilidade para realizar atividades cotidianas, bem como maior dificuldade de concentração e baixa produtividade. Em médio e longo prazo, sabe-se que as doenças do sono aumentam o risco de doenças crônicas como hipertensão arterial, dislipidemia, diabete e arritmias, além de favorecer a ocorrência de doenças psiquiátricas (como transtorno depressivo, transtorno de ansiedade e transtorno bipolar) e aumentar o risco de doenças cardiovasculares e cerebrovasculares, demências e cânceres. Na prática, a dívida do sono é uma conta que pode ser muito cara.
No artigo, os pesquisadores sugerem que, "apesar dos grandes avanços, a importância da saúde do sono ainda é sub-reconhecida pela maioria das agendas nacionais de saúde pública e instituições educativas (incluindo instituições de investigação) em todo o mundo. Este ponto de vista apresenta um urgente apelo à ação contemporânea, baseado em evidências, para incorporar a saúde do sono nas políticas globais".
Quem tem dificuldade com o sono, no Brasil, também pode procurar o Sistema Único de Saúde (SUS). A escolha da especialidade médica para uma consulta vai depender dos sintomas. No aplicativo Meu SUS Digital é possível ver diferentes especialidades médicas. O SUS também oferece a polissonografia, exame capaz de identificar distúrbios do sono como insônia, apneia do sono e síndrome das pernas inquietas. Porém, em maio, conforme dados das secretarias de saúde dos estados e do Distrito Federal e da Lei de Acesso à Informação, mais de 12 mil brasileiros aguardavam na fila para fazer o exame do sono.
O exame é oferecido também por hospitais e clínicas privadas e até startups já entraram no circuito para tentar democratizar o acesso. É o caso da Biologix, healthtech incubada no Eretz.bio, do Einstein. A startup desenvolveu um sensor similar a um oxímetro de alta resolução que permite que o paciente faça o teste de polissonografia em casa. O aparelho é colocado no dedo e permite que o paciente não durma envolto em fios. Ele mede itens como saturação, movimentação, ronco e frequência cardíaca e passa as informações em tempo real para um aplicativo que o paciente instala em seu próprio smartphone. Atualmente a empresa trabalha no esquema B2B2C, ou seja, ela negocia com profissionais e clínicas e estes oferecem o serviço aos pacientes. A média do preço cobrado pelos parceiros vai de R$ 200 a R$ 400, enquanto o exame tradicional pode passar de R$ 1,5 mil.
Os distúrbios do sono também podem afetar a economia. Um estudo realizado pelo RAND Corporation (instituto norte-americano de pesquisa) analisou o comportamento nos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Japão e Canadá, e apontou prejuízos não só para as empresas, mas também impactos econômicos em países inteiros, já que quando dormimos mal a produtividade diminui.
Muitas empresas, dessa forma, têm colocado o cuidado dos seus trabalhadores como uma das premissas de atuação pelo elevado custo que a falta de sono acarreta. De acordo com a Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), o mercado de benefícios corporativos deve crescer 9% no Brasil.
O levantamento Panorama do Bem-Estar Corporativo realizado pelo Gympass – benefício corporativo que ultrapassou a marca de 2 milhões de usuários em sua rede de mais de 50 mil parceiros no mundo – apontou que 98% dos profissionais dizem que uma boa noite de sono é importante para o bem-estar geral. No entanto, 60% dos colaboradores afirmam que não conseguem ter um sono de qualidade por conta do estresse no trabalho.
A pesquisa foi realizada com mais de 5.000 profissionais em nove países e trouxe informações importantes sobre as demandas da força de trabalho em relação ao bem-estar – em todas as suas oito dimensões (físico, emocional, social, financeiro, intelectual, espiritual, ambiental e ocupacional).
Para Renato Basso, VP de Pessoas do Gympass, o resultado reforça a importância "de as empresas oferecerem aos colaboradores flexibilidade e apoio na jornada de bem-estar, promovendo a qualidade de vida". Segundo ele, as pessoas que utilizam os aplicativos de saúde do sono oferecidos pelo Gympass têm relatado impactos positivos e significativos em suas rotinas. Esses aplicativos em geral são bem recebidos pelos usuários, pois oferecem soluções práticas para ajudar no cuidado com a concentração plena, saúde mental e saúde do sono: "Muitos profissionais de saúde reconhecem os benefícios da prática da meditação e do mindfulness para reduzir a ansiedade e melhorar o sono".
Ainda de acordo com a pesquisa, os participantes que perdem o sono por causa do trabalho afirmam que sentem uma piora no bem-estar emocional, na motivação e na produtividade: "A privação de sono, mesmo que por curtos períodos, prejudica o raciocínio, causa desgaste emocional e pode retardar reações físicas importantes para prevenir acidentes de trabalho, especialmente em ambientes de alto risco. Quando se torna um problema crônico, pode causar declínio cognitivo e aumentar o risco de desenvolver doenças cardíacas e obesidade", reitera Renato Basso, VP de Pessoas do Gympas.
A Alice, plano de saúde empresarial que surgiu em 2019 e conta com mais de 30 mil beneficiários, tem atuado nessa área também. Daniel Knupp, líder dos Times de Saúde da Alice, detalha que a saúde dos pacientes é medida por meio do Score Magenta, um indicador de saúde individual, construído com base em protocolos pautados em evidência científica, que dá uma nota de 0 a 1000 de acordo com as respostas das pessoas em relação a hábitos de sono, exercícios e alimentação, por exemplo.
Analisando o Score Magenta de pessoas há um ano sendo cuidadas pela Alice, observou-se uma melhora global na saúde. Um dos pilares em que houve melhora foi no sono: 50% dos membros indicaram esse resultado em seus dados. "Estamos reconstruindo o sistema de saúde no Brasil por meio de uma mudança cultural na saúde suplementar com atenção primária, coordenação de cuidado, tecnologia e modelo de pagamento baseado em valor. Um time mais saudável é muito melhor para o dia a dia e para os resultados de qualquer empresa", conclui.
De fato, o mercado deu asas à "sleeptech", uma indústria multimilionária com uma bateria de possibilidades tecnológicas que vão desde "gadgets" ou "wearables", que permitem realizar pequenos estudos do sono no pulso; até lâmpadas relaxantes, alarmes inteligentes ou fones de ouvido com ruído branco para dormir melhor. Anéis ou bandanas, pijamas infravermelhos para aliviar doenças musculares ou colchões inteligentes são adicionados a uma longa lista.
O impacto é enorme e um estudo da Arizton Advisory & Intelligence mostra que o mercado do sono atingirá US$ 137,16 bilhões até 2026. Além disso, o poder do setor é exemplificado por casos como o da Supermoon Capital, a primeira empresa de capital de risco a criar um fundo para o setor do sono.
O que também tem avançado são os testes genéticos. O meuDNA, um braço do grupo Mendelics que surgiu em 2019, realiza a análise e avalia diversas variantes genéticas presentes no DNA de uma pessoa que, juntas, influenciam a maioria das nossas características, incluindo as relacionadas ao nosso padrão de sono. David Schlesinger, geneticista e CEO do meuDNA, explica que é possível estimar com base no perfil genético de alguém suas chances de ter insônia, de ser noturno ou matutino, de dormir mais ou menos horas, de tirar um cochilo:
"De acordo com os fatores genéticos, a pessoa pode ter uma baixa chance de ter insônia, mas devido aos fatores ambientais e de estilo de vida, apresentar essa condição."
Segundo o geneticista, no DNA estão guardadas as informações genéticas que funcionam como instruções para a formação de uma pessoa, definindo muitas de suas características. "O teste genético pode trazer informações sobre seus traços físicos, personalidade, gostos, hábitos e também sobre a predisposição genética para desenvolver algumas doenças", diz.
Na pauta do sono, são muitas as discussões em um mercado que cresce a cada dia, mas que precisa ser acompanhado pelas agendas de todos os países, já que muitas dessas tendências e novidades não são tão acessíveis para a população.
Fonte: Futuro da Saúde